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O
Mundo Dos Contratos
“Tão
grande é o defeito de confiar em todos,
como o de não confiar em ninguém”.
(Sêneca)
Recordo-me de um tempo, em minha tenra infância, em que me dirigia até um
armazém na esquina de casa, a pedido de minha mãe, para buscar pão e leite. Não
necessitava levar dinheiro ou um bilhete assinado. Bastava minha presença para
trazer o que fosse preciso. O acerto de contas era assunto a ser tratado
posteriormente. Coisa de adultos.
Quando chegava o verão, eu podia inclusive dar-me ao luxo de passar pelo mesmo
armazém e apanhar um refrescante sorvete de palito. Claro que resguardados
certos limites – levar o time de futebol para compartilhar deste privilégio
era atitude passível de severa punição: a perda da confiança de meus pais.
O dono do armazém consentia com este procedimento porque tinha certeza de que
meus pais pagariam a conta. Analogamente, meus pais acreditavam que o valor
apresentado como despesa seria justo e correto, correspondendo exatamente ao que
fora consumido.
Cresci compreendendo que aquela situação representava uma espécie de contrato
social, calcado na honra e na palavra, ao que se convencionou chamar de “fio
de bigode”. E percebi que aquilo fazia parte de minha formação, de minha
cultura e de meu caráter. De tal forma que o empréstimo, entre colegas, de
livros, discos de vinil (sim, CD neste tempo eram apenas a terceira e quarta
letras do alfabeto) e até pequenas importâncias em dinheiro, era selado pelo
mero compromisso pessoal da devolução em perfeito estado de conservação.
Anos mais tarde uma oportunidade de trabalho bateu à minha porta. O destino era
uma pequena cidade que contava, na ocasião, pouco mais de 80 mil habitantes.
Aconchegante, bem estruturada, mas uma típica cidade interiorana.
Lá fiz amizade com um carioca, já radicado no local há um par de anos, que
sentenciou o que me aguardava. Disse-me ele: “Aqui, você é mocinho até que
se prove o contrário. Nos grandes centros, de onde viemos, é o oposto, ou
seja, somos bandidos até que provemos o contrário”. Dias depois pude
vivenciar aquelas palavras. E lembrei-me daquele armazém de minha infância.
As duas últimas décadas nos legaram abundância de recursos, tecnologia sem
precedentes, capacidade de comunicação quase ilimitada. Migramos do
racionamento para o delivery, do
mundo analógico para o digital, do telex para a videoconferência. E do “fio
de bigode” para o papel assinado.
Casamentos demandam acordos pré-nupciais, instituições de ensino firmam
contratos de prestação de serviços, reuniões são registradas em livros de
ata. Advogados grassam aos milhares. Uns, para elaborar contratos; outros, para
contestá-los. Sem falar do magistrado que delibera qual dos dois será
agraciado com a razão.
O contrato social verbal está extinto. Vigoram apenas os contratos políticos,
econômicos e até ecumênicos. Um mundo de contratos, impressos em cinco vias,
com duas testemunhas, registrados e com firmas
reconhecidas. Um mundo burocrático e cartorial onde uma pessoa conhecida
por escrivão, dotada de uma concessão
denominada fé pública, tem o poder
discricionário de dizer se eu sou mesmo a pessoa que declaro ser.
De tanto ouvir a assertiva “quem paga mal, paga duas vezes”, passei a andar
com um talão de recibo
De tanto prestar serviços com remuneração vinculada ao êxito, que quase
sempre obtenho, sendo desdenhado pelo cliente no recebimento de meus honorários
– o mesmo cliente que outrora, em dificuldades, faria qualquer coisa para
reverter sua situação – passei a solicitar-lhes uma assinatura ao final de
cláusulas e parágrafos. Ainda estou aprendendo a fazer isso, posto que contrário
à minha natureza. Mas estou aprendendo...
Hoje, quando entro em uma padaria e me deparo com um pequeno aviso anunciando
“Fiado só amanhã”, desperto para este novo mundo. Compreendo que a palavra
“fiado” advém de “confiado”, e que confiança é algo que antes nascia
com a gente, depois passou a ser virtude difícil de ser conquistada e, agora,
corre o risco de habitar apenas os dicionários e romances dos séculos
passados.
Acho que foi por conta disso que resolvi deixar o bigode crescer e me mudei para
o interior. Só para ser tratado como mocinho e poder, por mais algum tempo,
confiar e ser confiado.
Tom
Coelho
Matéria da 2ª quinzena de fevereiro / 2005
Tom Coelho, com graduação em Economia pela FEA/USP, Publicidade pela ESPM/SP e especialização em Marketing pela MMS/SP e em Qualidade de Vida no Trabalho pela FIA/USP, é empresário, consultor, escritor e palestrante, Diretor da Infinity Consulting, Diretor do Simb/Abrinq e Membro Executivo do NJE/Fiesp. Contatos através do e-mail [email protected]. Visite www.tomcoelho.com.br.
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