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- I N T E L I G Ê N C I A P O L Í T I C A -
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O jornalista, geógrafo e tropeiro Mouzar Benedito, um dos patronos do reconhecimento do Saci como brasileiro honorário e colunista de ViaPolítica, acaba de lançar, em São Paulo, o livro 1968, por aí... Memórias burlescas da ditadura. É difícil não admirar o original trabalho de Mouzar Benedito justo na época em que prolifera a erva daninha da literatura transgênica do tipo terminator, cujas sementes sem pátria são proibidas de brotar na geração seguinte.
Ao contrário, este mineiro egresso do
berço materno em Nova Resende, perito em
cachaças (das boas ou daquelas matadoras),
especializou-se em Brasil, e em descobrir nossa
identidade, nossas mazelas e virtudes, o que
revela e semeia país adentro. E sempre com um
olhar crítico e bem humorado, voltado para o
patético da existência de Sua Excelência, o
brasileiro.
Agora, com 1968, por aí... Mouzar
Benedito deixa as estradas poeirentas do sertão
e transfere-se para o mundo estudantil em
revolução. Há 40 anos, como muitos ainda
lembram, a América Latina fervia sob as botas
militares. Nosso autor, naqueles tempos um
estudante de geografia da Universidade de São
Paulo (USP), já enchia a cara de trago, jogava
conversa fora, e matava os amigos de rir no sem
fim de enredadas conspirações de botequim. O
epílogo, não se sabe ao certo até hoje, foi
desfavorável para a milicada, mas que Mouzar
Benedito colocou seu grão de areia no angu
verde-oliva, isso ninguém pode negar.
Acho que a maior contribuição deste
escritor mineiro – protagonista e testemunha do
processo histórico – ao desfecho da etapa
histórica iniciada há 40 anos, foi mesmo o
tiro fijo do humor singelo e admirado pelas
coisas do Brasil. E aí entra o povinho que
habita os grotões, estando ele nas lonjuras
rurais, periferias urbanas, universidades,
passeatas, quartéis ou na melhor mesa do bar,
nós mesmos. Esse contador de histórias é antes
de tudo um inveterado gozador, que faz piadas
com a desgraça alheia e a sua própria. Ele
descobriu cedo que só existem duas maneiras de
sobreviver na selva de Macondo: ou ser imortal
ou rir até morrer.
A seguir, alguns breves episódios de
1968, por aí... Memórias burlescas da ditadura,
selecionados pelo autor para os leitores de
ViaPolítica.
Milagre: tô fora!
Ocorreu durante o governo Médici o
chamado “milagre brasileiro”, com o país
crescendo mais de 10% ao ano e a classe média
ganhando mais (os operários, nem tanto: o
milagreiro Delfim Netto não queria que eles
participassem da festa, dividir os lucros, dizia
que tinha primeiro que esperar o bolo crescer
para depois dividir, e a divisão nunca
aconteceu, não é?).
Começou uma onda de viagens ao exterior
como nunca tinha
acontecido. Eu mesmo, com bom emprego no Sesc,
estava ganhando bem e podia viajar pra fora, mas
evitava, preferi conhecer o Brasil. Já vinha
viajando de carona, de trem, em situações
precárias, no milagre passei a viajar com mais
dinheiro, mas sempre pelo Brasil, com pequenas
incursões ao Paraguai e à Bolívia. Um dos
motivos era que eu queria conhecer o Brasil
mesmo, outro era que só de ouvir os relatos de
comportamentos de brasileiros endinheirados no
exterior eu ficava morrendo de vergonha.
Uma moça que foi numa excursão para a
Argentina me contou com alegria:
— Nós fomos num ônibus só de brasileiros a uma
casa de tango, mas levamos surdo, tamborim,
tudo, e entramos batucando e dançando samba.
Acabamos com o tango deles a noite inteira.
Nos aviões que chegavam do Brasil a
alguns países europeus (soube que aconteceu
inclusive na Inglaterra), quando abriam a porta
para os passageiros saírem, em vez de gente o
que saía primeiro era uma bola e atrás dela um
monte de caras se exibindo como originários do
“país do futebol”.
Na Bélgica, uma amiga viu uma loja com
uma placa escrita em português, na porta:
“Proibida a entrada de brasileiros”. Isto porque
muitos achavam que tinham que roubar alguma
coisa da loja, trazer um souvenir
roubado.
Vários exilados me contaram que quando
encontravam grupos de excursionistas do Brasil
fingiam ser estrangeiros, não falavam português,
por vergonha de ver o que faziam.
Isso fora a breguice da maioria de nossos
conterrâneos ascendentes social e
economicamente. Ficou famosa a história de uma
mulher (saiu até em reportagens) que entrou num
táxi e pediu para ir ao Museu do Louvre. O táxi
parou em frente a ele, a mulher olhou, olhou,
sem descer, e disse:
— Agora vamos à Torre Eiffel.
É assim que faziam atividades
“culturais”, conheciam os lugares.
Outra visitou um apartamento em que
moravam brasileiros, resolveu fazer uma comida
para a turma e precisava de canela. Foi a uma
farmácia (!) comprar a dita cuja, não sabia como
era a palavra canela em francês e julgou que era
só pôr um acento no final. Começou a pedir “canelá”.
Como ninguém entendia o que ela queria, ela
levantou um pouco a calça na altura da canela e
batia na perna, insistindo: “canelá, canelá”.
Diz o dito popular
Não eram só turistas deslumbrados que
faziam besteiras. Alguns exilados de verdade,
até de nível universitário, também davam suas
bolas foras. Como alguns que aprenderam francês
no Brasil. Um deles, recém-chegado em Paris, foi
levado pelo seu grupo de esquerda para uma
reunião com militantes franceses. No meio da
discussão, quis se exibir, dizer que com ele
tudo era assim “pão-pão; queijo-queijo”. Achou
que podia simplesmente traduzir esse ditado
literalmente e sapecou:
— Avec moi c’est ainsi: pain-pain;
fromage-fromage.
Os franceses ficaram olhando com cara de
quem não entendia nada que o cara falava e ele
não entendia a cara de espanto deles, ficou se
sentindo o máximo.
Interrogatório difícil
Titomu era colega de faculdade. Quer
dizer, da Geografia. Tímido, gaguejava demais.
Na frente de qualquer moça, era uma dificuldade
falar com ele. Na madrugada de 17 de dezembro de
1968, descobrimos que era também sonâmbulo. Foi
quando os militares, utilizando um grande
contingente de soldados e armamentos de todos os
tipos, invadiram o Crusp, onde morávamos,
considerado, ao lado da Faculdade de Filosofia
da USP, um dos maiores focos de contestação ao
regime.
Eles chegaram às 4 horas da manhã. Quando
acordamos com o barulho, estávamos cercados de
soldados e veículos militares, que rodearam todo
o conjunto de prédios, todos com armas pesadas
apontadas para nós. O Titomu morava no mesmo
prédio que eu, o Bloco F, com o Ariovaldo e não
sei quem mais. Das janelas, todos olhávamos a
movimentação das “gloriosas” forças armadas,
avaliando se havia possibilidade de fuga, quando
o Titomu falou para o Ariovaldo, sem gaguejar:
— Vou lá conversar com eles.
Ninguém deu bola, achando que ele
brincava, mas foi. Quando viram, ele estava
saindo do prédio, de peito aberto, rumo a um
tanque de guerra. Todo mundo gritava pra ele
voltar, mas ele nem ouvia. Estava dormindo! Era
sonâmbulo.
De repente, vários soldados pularam sobre
ele. Foi aí que acordou, sem entender o que
estava acontecendo. Foi jogado dentro de um
caminhão coberto com uma lona, onde um coronel
tentou interrogá-lo durante horas. Às 11h da
manhã, estávamos todos presos, esperando
transporte para nos levar ao presídio
Tiradentes, e vimos soldados descerem o Titomu
do caminhão. Veio para junto de nós, para ir
preso também. Perguntei o que fizeram com ele.
Disse que o coronel queria saber que tipos de
armas nós tínhamos. Mas para isso gastou mais de
meia hora, de verdade. Segundo ele, o coronel
fez mais duas perguntas. Ele quis nos contar
como foi, mas é claro que desisti de ouvir...
— Do Titomu ninguém arranca informação
nenhuma... — concluímos. — O coronel se ferrou
nessa. Imagine ouvir o Titomu nervoso!
Preso de novo
Para justificar a invasão do Crusp, foi
instaurado um IPM (Inquérito Policial Militar —
uma coisa temida durante a ditadura), que tinha
a função de provar que havia lá dentro um foco
de guerrilhas e outras coisas. Um exemplo
ridículo de acusações era que lá não havia
nenhuma virgem. As moradoras trepavam, diziam os
acusadores.
Logo nos primeiros dias de 1969, consegui
licença para retirar meus pertences no
apartamento em que morava com mais três colegas
— Chico Beltramini, estudante de Geografia;
Osvaldo Siqueira, de História; e João Chalita,
de Economia. Era retirar mesmo, pois não havia
chance de voltarmos para lá.
Todas as minhas roupas razoáveis haviam
sido roubadas, assim como todos os livros com
aparência de maior valor, para vender nos sebos,
além daqueles com títulos suspeitos, apreendidos
como “provas” que o Crusp era um centro de
subversão e treinamento de guerrilha.
O material de cartografia, todo
importado, que comprei a duras penas, pagando
prestações, dançou também. Sobrou para mim uma
malinha pequena de roupas velhas e outra de
livros sem capa ou muito manuseados. Mais tarde
cheguei a uma conclusão interessante: nunca fui
tão livre quanto nesse tempo em que não tinha
mais nada. Mudei seis ou sete vezes em um ano e
nem precisava pegar táxi, ia com uma malinha de
livros numa mão e uma de roupas na outra. Hoje,
cada vez que tenho que me mudar, me lembro disso
com saudade. Nada de geladeira, mesa, cama,
roupa de cama, estantes e muitos livros para
levar.
Bem. Encontrei alguns dias mais tarde com
meus três ex-companheiros de moradia, que também
haviam sido roubados, saqueados pelo Exército e
pela polícia, e resolvemos ir nós quatro juntos
fazer uma reclamação. Procuramos o coronel
Alvim, que comandava as tropas que permaneceram
no Crusp e era o responsável pelo IPM, mas nem
tivemos tempo de abrir a boca. Sem ele nem saber
quem éramos, teve um ataque histérico, xingando
a Polícia Militar, que fazia a guarda dos
prédios, me apontando e dizendo que a polícia
militar era tão incompetente que deixava um
terrorista andar por ali sem fazer nada. Vi aí
uma rusga entre o Exército e a PM. Mas o certo é
que o coronel mandou nos prender. Fomos logo
cercados por uns trinta soldados, comandados por
um tenente, armados e com medo da nossa reação,
pois éramos “terroristas” muito perigosos.
Enquanto discutiam para onde nos
mandavam, colocaram a gente num apartamento do
Bloco A, do Crusp, prédio em que — no tempo que
servia de moradia estudantil — só moravam
mulheres.
Fomos colocados num quarto, com soldados
na porta e outros na porta do apartamento.
Éramos perigosos mesmo, hein?! Estávamos putos
da vida e não podíamos nem conversar. Lembrei-me
então de folhar o jornal que levava, e os
soldados não me incomodaram. De repente, me
levantei e pedi para um deles:
— Chame o tenente, por favor. Preciso falar com
ele urgente.
Ele ficou meio sem saber o que fazer,
falou com outro, saiu e logo voltou com o
tenente, que estava tenso, aparentemente com um
pouco de medo.
— O que você quer? — perguntou.
— Quero te avisar que não posso ficar preso
hoje.
Ele fez cara de surpresa e nem partiu
para a porrada, o que era de se esperar na
época.
— Por que não? — perguntou.
Abri o jornal e mostrei o horóscopo pra
ele:
— Veja aqui o meu signo, Sagitário. Olha o que
está escrito: “Não mantenha-se isolado”. Ele
saiu dando risada, e o que eu queria que fosse
uma gozação serviu pra quebrar o clima hostil.
1968, por aí... Memórias burlescas da
ditadura, de Mouzar Benedito
Editora Publisher Brasil
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Tel: (11) 3813 1836.
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