Área Cultural Área Técnica

 Ciência e Tecnologia  -  Colunistas  -  Cultura e Lazer
 
Educação  -  Esportes  -  Geografia  -  Serviços ao Usuário

 Aviação Comercial  -  Chat  -  Downloads  -  Economia
 
Medicina e Saúde  -  Mulher  -  Política  -  Reportagens

Página Principal

P E N S A M  E N T O S    &   C I A.
0 1  /  M A I O  /  2 0 1 0

PEQUENO RELATO DE UMA JOVEM CIDADÃ DO MUNDO

            Que ousadia a minha sentir-me tão à vontade aqui. Fazem apenas três semanas que cheguei e sinto-me em casa. Na primeira noite a cama já me agradou. Em uma semana e meia botei ordem na casa para que todos colaborassem com a limpeza, sentindo-me parte dessa “comunidade”, que é o nosso apartamento aqui de Madrid: Crassos, Sijia, Lien, Manon, Peter e eu. À medida que uns começam a se despedir (Lien se vai amanhã, Manon na segunda, Crassos na sexta...) me dou conta que daqui uma semana sou eu quem parte e que minha casa não é aqui e que Madrid não é minha.

            Meus primeiros dias aqui foram de uma euforia intensa. Também pelo fuso horário, não conseguia dormir por mais de cinco, seis horas... Queria ver tudo e experimentar tudo e, para isso, o dia não podia acabar. A viagem para Barcelona, já na minha primeira quinta-feira foi uma aventura intensa, muita energia, muita novidade, uma certa tensão de estar por apenas três dias em um lugar que requer uns três meses para se ver, degustar, digerir... Por um milagre, nosso único dia de passeio em Barcelona parece ter durado três. Vimos muitíssimas coisas, estivemos em muitos lugares, caminhamos, comemos, bebemos, corremos, nos perdemos, nos achamos, rimos muito... Sebastián e Jose Luis serão lembrados por esse dia “inolvidable”, como se diz em castellano.

            No domingo estava em Gava, na casa de meu primo Juninho, que foi um aconchego: falar português, comer comida com tempero de Brasil, se reconhecer em pessoas que tem o mesmo sangue, e aquele conforto que a gente sente em nossa, em nossa terra. A passagem por lá foi rápida e na segunda de manhã já estava a caminho de Tarragona. Vou confessar que estava um pouco apreensiva com o encontro que se daria em lá. A idéia de ser recebida pelo coordenador da pós-graduação me deu um frio na barriga. Mas naquele dia eu decidi acordar otimista. Normalmente, eu espero o pior. Bem, na verdade, costumo pensar que a pior das possibilidades pode se materializar e tento me preparar para isso. Mas nesse dia, não. Estava acreditando que, mesmo sem meus documentos em mãos, (pois os mesmos estavam dentro da mala que me roubaram na viagem de Madrid a Barcelona) a conversa poderia ser ótima e as perspectivas também. Pensamento profético! Foi um encontro muito animador que me encheu de mais desejo e disposição de voltar a Tarragona no próximo janeiro para estudar.

            A viagem me devolveu a Madrid com um pouco de sono e cansaço e, a partir desse dia, consegui dormir uma horinha a mais por noite. Na segunda semana fui a lugares muito marcantes: o Museo Reina Sofia, com obras impressionantes como o Guernica que me fez chorar (podem achar piegas, mas é verdade); o Museo Thyssen-Bornemiza, que além de muito rico, tinha uma exposição temporária de Monet que, lindíssima, me ajudou também a entender um pouco melhor as obras de arte abstratas... Coisas que te fazem sentir mais inteligente, fazem bem para o ego, não?

            Nessa semana fui ao teatro ver duas peças de Ingmar Bergman, “Escenas de um Matrimonio” e “Sarabanda”, fiz muitas compras para repor meus objetos perdidos, teve o dia do livro... Ah! Este dia foi muito curioso. O dia do livro aqui em Madrid tem uma comemoração especial. Acontecem vários eventos nas livrarias da cidade, em parques e praças também, voltados para a celebração dos livros: lê-se o Don Quijote ininterruptamente durante as 24 horas do dia 23 de abril; realizam-se saraus, apresentações de música, teatro para crianças... há festa em vários pontos da cidade. Na tentativa de participar da rotina da cidade, olhei no jornal os diferentes eventos com música e selecionei o que era mais perto da minha casa. Chegando lá, era uma pequena livraria que estava abarrotada de gente. Na verdade, não havia tanta gente ali, mas como era uma loja pequena, praticamente não dava para caminhar. Eu entrei, mesmo assim, me espremendo entre as pessoas e as prateleiras e logo entraram duas mulheres com bandejas na mão, tentando abrir caminho entre as pessoas para chegar ao fundo da loja. Abriram as bandejas e começaram a servir pequenos sanduíches de pão de forma, caseiros. De início, não me senti “digna” de aceitar; não fazia parte, sentia-me quase uma “penetra” no meio de um monte de gente que se cumprimentava, se sorria, conversava entre si, enquanto eu tinha como companhia apenas os livros e as prateleiras. Abria um, lia um trecho, abria outro, lia outra parte... A música não começava nunca e eu já estava perdendo a coragem, ou melhor, a cara de pau (apesar de ter aceitado o sanduíche numa segunda oferta). Finalmente, um som de violão. Pela reação das pessoas, me dei conta de que realmente as pessoas estavam ali para prestigiar alguém conhecido: o dono da livraria, o cantor, a instrumentista... O anúncio no jornal tinha sido publicado para ser guardado por eles para a posteridade e não para atrair gente nova ou perdida, como eu. Mas enfim, apesar de já ambientada e tendo vencido o medo inicial de ser descoberta como “a estranha no ninho”, não gostei da música. Ouvi três canções e parti.

            No dia seguinte fui ao belo Parque del Retiro, estava um dia lindo de sol. Fui caminhando do apartamento até lá. Como me orientou o porteiro: Calle Fuencarral, izquierda en la Gran Via, Plaza Cibeles... Linda Madrid ensolarada! O trajeto seria de não mais de 20 minutos, trinta no máximo. Levei duas horas andando devagar, entrando e saindo de lojas, olhando as pessoas. Que alegria estar em Madrid. No caminho para o parque me deu vontade de ser daqui. Não de ser espanhola, madrileña, mas de ser eu, brasileira, com um mundo meu aqui. Sonhos ciganos.

            No domingo fui a Salamanca. Foi um passeio muito gostoso. No dia em que cheguei estava muito cansada, com sono e preguiça. Ainda assim, Lien e eu conseguimos ver bastante coisa, a passos lentos. Mas também, Salamanca é pequena e os pontos turísticos principais estão numa mesma área. Ao final do dia (por volta de seis e meia) estava exausta. A Lien voltou para Madrid e eu voltei para o apartamento do Carlos e da Carol, casal de amigos do Leo, que me receberam com carinho. Tomei um banho e deitei no sofá. Ficamos conversando ali por alguma horas. O Carlos animado, engraçado, com um humor interessante: aquele tipo de pessoa que pode ficar falando horas e a “platéia” escutando sem se entediar, fazendo um comentário aqui outro ali, mas não muitos para não roubar a cena. A Carol tem um mau-humor intrigante, cativante, até, eu diria, para pessoas como eu, que se agradam dos ranzinzas. Não sei porquê sou inconscientemente levada a gostar dos insatisfeitos. Gostei muito da Carol. Umas onze da noite, depois de alternarmos entre português e castellano, Rio de Janeiro e Salamanca, o Carlos foi preparar um risoto e a Carol se arrumar para irmos a uma festa brasileira, que no final não deu em nada, mas a noite já estava ganha. No dia seguinte, passei o dia com a Maria Carolina. Acordamos tarde e fomos dar uma volta pela cidade. Paramos num jardim super acolhedor e ficamos ali de conversa por mais uma hora, pelo menos. Ouvi-la falar da sua vida e das suas histórias me fez lembrar de muitas coisas parecidas pelas quais já passei, e no trem de Salamanca a Madrid fiz uma retrospectiva dos últimos dez anos da minha vida. Profundo.

            Terça-feira: aula de espanhol de manhã e de tarde, siesta no intervalo entre uma e outra e à noite, Salsa. Foi engraçado sair para dançar salsa. Eu, Lien e Crassos fomos a um lugar chamado Azucar. O público era de latino-americanos: cubanos, equatorianos, dominicanos... Até um senegalês encontramos bailando muchísimo bien, com aquela ginga que nós, brasileiros, só temos porque herdamos da África. Tinha uma brasileira preparando caipirinhas no bar e a música soava um pouco brega, mas bem, quem está na chuva é para se molhar. Saímos encharcados! Meus pés estavam me matando, mas voltamos caminhando no meio da madrugada, umas quase cinco da manhã porque como turistas tipicamente perdidos, perdemos o ônibus e o metrô ainda não estava aberto. Tinha bastante gente na rua. Ô cidadezinha boêmia! Chegamos em casa umas seis da manhã.

            Nessa semana fui ao teatro outra vez, mas desta vez confesso que não aproveitei muito. Era uma peça de Lope de Vega e acho que o espanhol mais antigo foi um pouco inacessível para mim. Às vezes me acho muito presunçosa: entender Lope de Vega assim de cara é querer demais. Fui a um concerto lindo no Auditório Nacional de Música, conheci o majestoso Museo del Prado!!! Mas não deu tempo de ver tudo e terei de voltar lá esta semana.

            Chegou a sexta-feira. Eu e minhas compañeras de piso fomos jantar num tradicional restaurante chinês, escolhido a dedo pela Sijia, que fez todos os pedidos e nós simplesmente comemos. Hummmmmmm... Depois saímos de copas como não poderia deixar de ser: sair para beber de bar em bar, até num karaokê fomos parar a pedido da Lien, e, como era sua despedida, aceitei. Dancing Queen foi o sucesso da noite e teve até briga pelo microfone!

            Hoje é sábado, falta exatamente uma semana para eu voltar ao Brasil. Só falta uma semana, mas ainda falta uma semana e não vou perder nem mais um minuto!!!!

Marcelle, sábado, 1º de maio de 2010. 

NOTA: Marcelle é uma jovem tradutora de conferências, professora de pós-graduação de tradução inglês da Universidade Gama Filho e adora viajar pelo mundo.

PUBLICAÇÃO AUTORIZADA EXPRESSAMENTE PELA AUTORA
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS AO PORTAL BRASIL
® E À SUA AUTORA

LEIA MAIS "PENSAMENTOS & CIA"  ==> CLIQUE AQUI


FALE CONOSCO ==> CLIQUE AQUI