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Fevereiro / 2004
2ª quinzena - Da
euforia à decepção
1ª quinzena - As suspeitas
de sonegação da CPMF
2ª quinzena - Da euforia à decepção
Há pouco mais de um mês,
em 12 de janeiro, chamei a atenção para a fragilidade do otimismo que havia tomado conta da
economia brasileira: os indicadores de renda e emprego não melhoraram, a dívida
pública continuava em patamares preocupantes e a estabilidade recém-conquistada
parecia estar ameaçada.
Se passaram pouco mais
de 30 dias e
o clima de grande otimismo deixou de existir.
Surgiram indícios de
remarcações de preços causadas pelos impactos inflacionários da alteração
na cobrança da Cofins. Em seguida, a continuidade da estabilidade de preços
foi posta em dúvida pelo Banco Central em sua fatídica ata que não endossou
nova redução da taxa Selic. Rapidamente a euforia cedeu espaço à decepção.
O desarranjo tributário causado por recentes alterações em alguns impostos
foi um dos principais fatores determinantes dessa reviravolta.
O tempo vem
comprovando, até mais rapidamente do que se poderia imaginar, a tese que venho
defendendo há anos: a de que, nas circunstâncias sociais, econômicas e
culturais do Brasil, a substituição dos tributos cumulativos por incidências
não-cumulativas é um erro que poderá produzir conseqüências inesperadas.
Os defensores da não-cumulatividade
do PIS/Cofins, profundamente decepcionados com os resultados práticos da adoção
das medidas que vinham preconizando havia tanto tempo, rapidamente deslocaram o
eixo do debate para a questão do exagero na fixação das alíquotas dos novos
PIS e Cofins, que multiplicaram as alíquotas cumulativas por um fator igual a
2,53. Pretendem, com isso, fazer crer que a meta da não-cumulatividade é
correta e que o erro se situa na ganância do governo, que pretende aumentar sua
arrecadação a qualquer custo.
Embora não se possa
desqualificar o argumento sobre as intenções da administração, é preciso
esclarecer que as alíquotas não-cumulativas atuais são equivalentes às alíquotas
cumulativas anteriores, fazendo-se a devida correção para garantir a mesma
base de incidência, como demonstrado em recente estudo da Receita Federal (nota
Copat/Copan 88/ 2003). O aumento da arrecadação, segundo o documento, ocorreu
porque o novo PIS/Pasep passou a gravar as importações, como aliás não
poderia deixar de acontecer se se aceita a tese de que no comércio
internacional a tributação deve ocorrer sempre no destino.
Há que notar que a
sistemática adotada pelo governo é inerente à técnica não-cumulativa da
tributação. Em outras palavras, o governo está fazendo exatamente o que vários
setores do empresariado nacional vêm defendendo há anos. Agora, contudo, eles
são os primeiros a sofrer na carne os efeitos das propostas que preconizaram de
forma irrefletida, quase preconceituosa, condicionada por raciocínios
cerebrinos e distantes da realidade brasileira.
Roberto Campos certa
vez se referiu à intrigante distinção feita no Brasil entre dois tipos de
cascata. Uma, tida como maligna, inclui os odiados CPMF, PIS e Cofins. Contra
eles são disparadas as mais violentas críticas.
Por outro lado, existem
tributos cumulativos unanimemente aplaudidos e tidos como notáveis contribuições
brasileiras à ciência tributária. São eles o Simples e o Imposto de Renda
das empresas tributadas pela modalidade do lucro presumido. Cumpre observar que
nesses dois casos a opção é exclusivamente das empresas e que, ao fazerem
essa escolha, estão reduzindo suas obrigações tributárias. Merecem,
portanto, rasgados elogios, ainda que, do ponto de vista técnico, o Simples e o
IR sobre o lucro presumido sejam tributos em cascata tanto quanto a CPMF e a
Cofins.
Na esteira dessa incrível
esquizofrenia tributária, a alteração do PIS/Cofins, tornando-os não-cumulativos,
terá profundas implicações distributivas e alocativas. Se, por um lado, a
retirada da cumulatividade poderá favorecer os setores produtivos com fortes laços
de complementaridade com outros setores fornecedores de insumos e matérias-primas,
por outro essa medida implicará brutal elevação da carga tributária nas
atividades do setor terciário, no qual a compra de insumos representa pequena
parcela do faturamento bruto. Os impactos desestabilizadores dessas medidas são
evidentes.
A discriminação
contra os prestadores de serviços é explícita, como pode ser verificada em
uma declaração, dada a um jornal, de um alto dirigente da CNI (Confederação
Nacional na Indústria) ao afirmar que "o setor empresarial vem defendendo
nos últimos dez anos o fim da cumulatividade e tem consciência de que haveria
impactos diferenciados". Trata-se de afirmação surpreendente, pois aquele
órgão admite assim que já previa, e aceitava, que setores como os prestadores
de serviços e o comércio, entre outros, poderiam ser fortemente prejudicados
pelas medidas. Ao que parece, contudo, aquele organismo apenas passou a
discordar do novo PIS/Cofins quando constatou que alguns ramos do setor
industrial também poderiam ser prejudicados, fazendo-o mudar de posição e
passar a criticar a não-cumulatividade da Cofins.
O incidente Cofins não
foi o único responsável pela inversão das expectativas. Mas certamente foi o
estopim para a eclosão do atual clima de decepção e de incertezas.
1ª quinzena - As suspeitas de sonegação da CPMF
Inúmeras pesquisas de opinião pública demonstraram que os contribuintes brasileiros atribuem à CPMF a virtude de ser um tributo de difícil sonegação. É considerada universal e democrática. Todos pagam, até a economia informal. Até mesmo os contraventores e criminosos dificilmente encontram meios de burlar a arrecadação desse tributo. Trata-se de uma reconhecida vantagem da CPMF sobre outras formas declaratórias de tributação.
Na realidade, ficam de fora dessa forma de exação fiscal apenas as pequenas transações, mais facilmente liquidadas sem a interveniência do sistema bancário. Contudo, o valor total dessas transações é pequeno e tende a diminuir com a globalização e com a inexorável tendência mundial de substituição da moeda manual pelas inúmeras formas de moeda escritural, desde os ultrapassados cheques de papel até as transações eletrônicas via internet.
Nesse sentido, a notícia veiculada no último dia 20 pelo "Valor Econômico" de que a Receita Federal vem autuando pesadamente os bancos por suspeita de sonegação da CPMF causou surpresa e indignação.
As primeiras suspeitas de evasão da CPMF vieram a público em 2000. O Banco Central detectou transações efetuadas por bancos em favor de seus grandes correntistas. O estratagema de "economia tributária" envolvia a liqüidação de pagamentos em nome dos seus clientes preferenciais por meio de contas correntes mantidas com corretoras e distribuidoras de valores, cuja movimentação bancária é isenta da cobrança de CPMF.
Agora, a Receita Federal revela que autuou grandes bancos por falta de recolhimento da CPMF em operações com cheques administrativos endossáveis emitidos em nome de clientes, que os utilizavam para a realização de pagamentos sem a cobrança da CPMF. Segundo a Receita Federal, o valor das autuações da CPMF atingiu mais de R$ 1 bilhão em 2003, o que representou cerca de 26% do total das autuações fiscais contra os bancos.
A notícia é chocante e, ao mesmo tempo, esclarecedora.
Choca por desvendar os tortuosos desígnios de alguns bancos que não hesitam em burlar o espírito de nossa legislação tributária, ainda que possam acreditar que suas ações se revestiam da mais absoluta legalidade. É claro que seus atos podem até ser legais, mas jamais poderiam ser considerados legítimos.
Ao mesmo tempo, a notícia dos desvios praticados pelos bancos esclarece a opinião pública acerca dos riscos envolvidos na adoção de uma sistemática tributária inovadora, como o imposto sobre movimentação financeira, sem as cautelas e os cuidados que deveriam ter sido adotados quando de sua implantação pioneira, em meados da década passada.
A CPMF é um tributo praticamente insonegável para o contribuinte comum. No entanto sua operacionalização é efetuada pelo sistema bancário. É possível afirmar que o tributo é de difícil evasão, a menos que exista má-fé e conivência dos bancos.
O sistema bancário é o operador e o fiel depositário da CPMF. Nesse sentido, ao praticar atos que lesem o interesse público deve ser responsabilizado.
Mas o que efetivamente chama a atenção é o fato de que, desde sua implantação inicial em meados da década de 90, pouca ou nenhuma atenção foi dispensada pela Receita Federal na fiscalização dos bancos no tocante ao recolhimento da CPMF. Apenas nos últimos três anos é que se passou a fiscalizá-los com maior rigor, após as revelações do Banco Central sobre as fraudes que vinham sendo praticadas.
A CPMF vem sendo recolhida desde 1997 sem que o governo tenha tido, com os bancos, o mesmo rigor na fiscalização que vem tendo com os contribuintes dos demais setores da atividade econômica. O prejuízo pode ter sido incalculável. Por outro lado, é natural que surjam dúvidas até mesmo sobre a correção das transferências aos cofres públicos dos valores debitados nas contas correntes dos depositantes no passado.
A CPMF revelou ser um tributo eficiente, de baixo custo, robusto e resistente a fraudes em sua mecânica operacional regular. Contudo não se pode esperar que seja igualmente resistente às investidas maliciosas de seus próprios operadores. Trata-se de um tributo que torna desnecessária a manutenção do gigantesco aparato fiscalizatório usualmente associado aos tributos declaratórios como o Imposto de Renda e o ICMS, mas não pode dispensar um aparato de auditoria nos meandros da engenharia financeira e da informática bancária.
De fato, a CPMF não necessita de um único fiscal para auditar o contribuinte. Mas não pode prescindir de um sistema de fiscalização eficiente e especializado quando se trata de auditar os próprios arrecadadores.
- Texto de Marcos Cintra
Cavalcanti de Albuquerque -
Doutor pela Universidade Harvard, professor-titular e vice-presidente da
Fundação Getúlio Vargas
PUBLICAÇÕES
AUTORIZADAS EXPRESSAMENTE PELO DR. MARCOS CINTRA
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