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Maratona
da Vida
"Brasil,
qual é o teu negócio?"
(Cazuza)
A cena é já velha conhecida de todos nós. O semáforo fecha, os carros param
e uma pessoa, jovem ou idosa, circula pelo corredor formado por entre os veículos
depositando objetos de toda ordem sobre o espelho retrovisor: balas, canetas,
flanelas, adesivos. Enfim, qualquer coisa que possa receber o valor de R$ 1,00
estampado num pedaço de papel xerocopiado várias vezes com mensagens de
“estou desempregado”, “garantir o sustento de minha família” e “Deus
lhe abençoe”.
Dia destes flagrei-me conversando com meu lado mais cartesiano, aquele que
sublima a matemática existente por trás das notas musicais e da geometria das
construções. Os números, quando não manipulados, mentem jamais. O cálculo
dispensou uso de máquina: observei um garoto percorrer 10 veículos.
Considerando-se uma distância média de 2,5 metros por veículo (seu
comprimento acrescido da distância mantida para o colega posicionado adiante),
temos uma distância percorrida de 25 m. Porém, o garoto percorria, a cada semáforo
fechado, quatro vezes esta distância para distribuir, retornar, recolher e
posicionar-se no ponto de partida uma vez mais. Ou seja, são 100 m por semáforo
fechado. Tomando-se um intervalo de 2 minutos entre duas paradas, o garoto
percorre este trajeto 30 vezes em uma hora. Fazendo-o por 6 horas ao longo do
dia, temos a surpreendente marca de 18 Km diários. Uma meia-maratona!
Sem preciosismos, podemos julgar o garoto do exemplo acima muito lépido e
argumentar que, na verdade, o trajeto percorrido não passa da metade do
exposto. Continuamos com 9 km diários, sob sol e chuva, descaso e arrogância,
medo e intolerância.
Este é um exemplo cristalino da Economia informal que toma conta deste país. Há
toda uma indústria paralela por trás desta mendicância: do fornecedor de
balas, canetas, flanelas e adesivos, ao fornecedor do papel xerografado e de
embalagem plástica que compõe o tal kit.
É evidente que sempre haverá quem argumente que tais pessoas gostam de exercer
esta “profissão”, que na verdade não querem procurar um “emprego” legítimo.
Ainda que isso seja um fato, em meu entender não generalizado, a resposta a
asserções deste gênero veio estampada nas manchetes dos jornais do dia
24/06/03. Tumulto no Rio de Janeiro onde 15.000 pessoas se espremeram como em
latas de sardinhas numa fila para se candidatarem a vagas, incertas em
quantidade e data para início, para atuarem como varredores de rua, os garis.
Por um salário equivalente a US$ 7,00 diários, pessoas com nível superior de
instrução acamparam por até dois dias para pleitear a segurança de um
emprego.
Diante deste quadro, pode parecer contestação filosófica, bravata
pseudo-intelectual, mas não há como deixar de se questionar: Que diabos de país
é este que estamos construindo?
Em 19/09/2002 escrevi um artigo intitulado “Um Voto na Esperança”. Não foi
um texto muito difundido, até porque muito perecível. As eleições estavam próximas.
Nele, eu falava sobre a retórica do “Brasil, país do futuro” e ilustrava
nosso atraso sócio-econômico representado por nossa 65a posição
no ranking de desenvolvimento humano (IDH-ONU) e nossa majestosa 4a
colocação no Índice de Gini, que mede concentração de renda, no qual
perdemos apenas para os paupérrimos africanos Serra Leoa, República
Centro-Africana e Suazilândia.
Onze meses depois, transcrevo trechos daquele artigo:
“Não quero parecer teórico. Mas os números acima estão refletidos na tragédia social que nos abate hoje. Desemprego, violência, crianças nas ruas, epidemias, são subprodutos de um mal maior: o modelo econômico adotado por nossos governantes e a gestão pública praticada neste país. O Estado brasileiro se desenvolveu e esqueceu a nação, esqueceu o cidadão.
Acredito
que meio século deve ter sido minimamente suficiente para sepultar a idéia de
“fazer o bolo crescer para depois repartir”. O Brasil já não pode mais ser
o país do futuro porque está paulatinamente corroendo o entusiasmo e a esperança
no seio de cada cidadão. Parafraseando Shakespeare, “nós sabemos o que
somos, mas não o que podemos ser.”
As
eleições de outubro próximo simbolizam uma vez mais um marco na condução
dos rumos deste país. E não estou falando apenas de eleição presidencial,
mas em todos os níveis (não prospera o Gabinete sem o Parlamento). Democracia
não se fala. Pratica-se. Cada povo tem o governo que merece e nenhum governo
pode ser melhor do que a opinião pública que o apóia.
Uma
vez mais, vemos desfilando candidatos que prometem construir pontes mesmo quando
não há rios. Pessoas que serão eleitas não pela defesa de argumentos, mas
pela venda eficiente de ilusões. Os homens são todos parecidos em suas
promessas, só diferem nas realizações. O roubar pouco é culpa, o roubar
muito é grandeza: o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito,
poder, os Alexandres. Todo homem é uma caricatura da época em que vive; muito
poucos são capazes de ter idéias além da época. Muito poucos têm perfil
para serem estadistas.
Há
um provérbio japonês que diz: nenhum de nós é tão inteligente quanto todos
nós. O simples fato de eu e você, leitor, ter acesso a um computador e à
internet, credencia-nos a compor a base mais estreita da pirâmide. E, por
conseguinte, impõe-nos uma responsabilidade cívica de promover o debate como
formadores de opinião que somos.
A
felicidade baseia-se na eliminação de três fatores principais: doença,
pobreza e conflito. E embora o mundo de hoje praticamente imponha um ideal de
auto-sustentação, através do qual as pessoas são impingidas a cada vez mais
prescindir de seus governos, especialmente nos países subdesenvolvidos, a
regulação estatal será sempre essencial para aplacar o sofrimento dos
pequenos ante as tolices cometidas pelos grandes. Camponeses pobres, reino
pobre. Segurança para alguns, insegurança para todos. Ninguém come
macroeconomia.
Se
a igualdade não é possível, que as desigualdades sejam amenizadas. Se a justiça
plena é inatingível, que as injustiças sejam abrandadas. Se as idéias não são
convergentes, que os conflitos sejam arrefecidos. Sendo nosso povo tão
tolerante, que a esperança não lhes seja extirpada.”
Pois bem. Foi com curiosidade, e alegria, que vi após a eleição Lula
proclamar que “a esperança vencera o medo”. E eu, revestido de esperança,
aguardei a virada do ano e os famigerados 100 primeiros dias de governo,
acreditando que algo mudaria.
Porém, mais de 200 dias se passaram. E em nome da Macroeconomia, da
credibilidade e do capital internacional, da gestão responsável das contas públicas
e mais uma série de argumentos, nada mudou. Não pretendo debater Economia,
pois academicamente abdiquei da mesma em favor de outros temas que me são mais
aprazíveis. Compreendo o porquê de muitas ações e medidas tomadas, justificáveis
num primeiro momento, porém não mais agora. A falta de ousadia mínima, a
hesitação subserviente, o medo contumaz, implicarão na retomada do discurso
de “dividir o bolo depois”. Só que até lá, todos terão morrido. De fome,
de desilusão, de desesperança.
Pouco me importa os rótulos. Sou, aliás, contrário ao uso deles. Podem chamar
de Estado Social-Democrata, de Estado Keynesiano, de Estado do Bem-Estar Social.
Chamem como quiserem. Se desejarem uma sugestão, qualifiquem de Estado
Empreendedor. Mas que se faça algo! A iniciativa privada não tem mais fôlego
para, com uma carga tributária superior a 40%, executar ações que cabem ao
Governo. As empresas de grande porte fecharam 400.000 postos de trabalho ao
longo dos últimos 10 anos e respondem por apenas 2,3% da força de trabalho
ocupada. São as pequenas e médias empresas que sustentam este país e que de
forma assistencialista procuram conceder benefícios aos seus funcionários e
adotar entidades por uma questão de ética e responsabilidade social. Alguns
dirigentes são maçons, outros rotarianos, outros contribuem em suas igrejas.
Fazem o que o Estado não faz – mas deveria. Gastam-se bilhões com juros e
com uma série de outras contas, mas não se pode canalizar recursos para
incentivar a produção, para fazer a transposição das águas do São
Francisco, para dar oportunidade de trabalho a essa gente boa que só quer
trabalhar.
Não tenho respostas. Pensei que as tivesse. Também não fiz a chuva grossa.
Estou apenas atrás do melhor guarda-chuva. E não apenas para mim...
Tom
Coelho
Matéria da 3ª semana de agosto/2003
Tom Coelho, com graduação em Economia pela FEA/USP, Publicidade pela ESPM/SP e especialização em Marketing pela MMS/SP e em Qualidade de Vida no Trabalho pela FIA/USP, é empresário, consultor, escritor e palestrante, Diretor da Infinity Consulting, Diretor do Simb/Abrinq e Membro Executivo do NJE/Fiesp. Contatos através do e-mail: [email protected]. Visite www.tomcoelho.com.br.
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