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- Direito & Defesa do Consumidor -
- Dezembro / 2002 -

Nota da redação: Todas as matérias publicadas são de propriedade de seus respectivos autores,
 aqui reproduzidas na íntegra gratuitamente e de caráter meramente informativo.


Dezembro/2002, 2ªquinzena - A ética nas funções de Estado (22.12.2002)


Marco Aurélio Mendes de Farias Mello

(Presidente do Supremo Tribunal Federal.)

  Será uma boa nova o retorno à velha discussão sobre a ética na gestão pública? Os otimistas decerto responderão que sim, vendo a questão como sinal do despertar da consciência cívica nacional ou, mais ainda, como prova viva do amadurecimento político do País. Os mais pessimistas, já descrentes, enxergarão, sem dúvida, os escândalos por trás da notícia, os abusos e desmandos que serviram de mote à volta do assunto às páginas dos jornais. Qualquer que seja a vertente escolhida, porém, o fato é que, a cada dia, a população parece mais intransigente e vigilante em relação ao comportamento dos agentes públicos. Daí a grande repercussão das manchetes em se tratando de desvios de conduta, sempre ganhando vulto, temerariamente, até um mero indício sobre uma mínima possibilidade de corrupção. Lenta, mas solidamente, vai-se incutindo na sociedade brasileira a exata noção acerca da importância da transparência nos atos de administração pública, do combate eficaz à corrupção, da cobrança diária no tocante à responsabilidade dos agentes públicos.

  Hoje em dia, não parece se mostrarem suficientes, aos olhos do povo, eventuais bons resultados da ação estatal, mensurados no âmbito da eficiência e eficácia e estampados em relatórios recheados de cifras e índices alentadores. Exige-se daqueles que personificam o Estado postura compatível com o múnus público. Há de se cumprir e respeitar as leis, sim, mas à luz da ética como norte fundamental nas relações interpessoais.

  E o que vem a ser a ética, palavra que, originando-se do grego ethiqué ou ethos e do latim ethica, ethicos, tem a ver com costume, uso, caráter, comportamento? Passando ao largo da seara árida das definições acadêmicas, pode-se assentar, como o fez o professor Miguel Reale, revelar-se a Ética como a ciência normativa da conduta, ou como um conjunto de valores e regras de comportamento, um código de conduta que as coletividades — todas — adotam. Na verdade, a preocupação com a ética como princípio de conduta humana é tão antiga quanto a própria humanidade, já que, de acordo com o antropólogo francês Claude Levi-Strauss, a passagem do reino animal para o humano, isto é, a transição da natureza para a cultura, só aconteceu quando, em face da proibição do incesto, instaurou-se a lei, estabelecendo-se, desse modo, as relações de parentesco, de grupo e, conseqüentemente, de alianças sobre as quais se soergueu a organização social humana. Portanto, é de se afirmar que não existe um povo sem um conjunto de regras morais, imprescindíveis para garantir a convivência entre os homens, cujo trabalho coletivo alicerçou-se na concordância entre os partícipes, garantindo, assim, com o domínio das forças da natureza, a sobrevivência da espécie.

  Longe estou da pretensão de discorrer sobre o pensamento de Aristóteles — para quem a felicidade, o fim último da vida, só poderia ser alcançada por meio das virtudes intelectuais e morais —, ou de endossar a teoria de Thomas Hobbes — que, na obra Leviatã, concluiu ser necessária a presença de um Estado forte para reprimir a inerente maldade humana. Tampouco defenderei o Contrato Social de Jean-Jacques Rousseau, segundo o qual os homens, bons por natureza, corrompem-se pela vida em sociedade, mostrando-se os desvios éticos como consectários naturais dos desajustes sociais. A discussão sobre os desvãos teóricos da ética na história humana demandaria incursões à vasta obra de Kant — que, desprezando os efeitos, entendeu ser a motivação ética o substrato para se julgar a moralidade de determinado ato —, ou de Spinoza, cuja tese assenta-se na premissa de que a noção do bem e do mal deve ser delineada à luz das necessidades e interesses dos homens. Cumpriria também lembrar Nietzche, o irrequieto filósofo alemão que, numa crítica feroz à moral, sustentou ser bom tudo o que fortifica no homem o sentimento e a vontade de potência, e mau tudo o que provém da fraqueza, de maneira que a moral seria, então, a arma dos fracos à vista da natural auto-realização dos mais fortes. Em contraposição, caberia aludir às lições de Bertrand Russel, consoante as quais a humanidade imprescinde da organização moral, pelo que os homens só são completos se participam plenamente da vida em comunidade.

  Claro está que o tema afigura-se inesgotável. A sociedade brasileira há muito já intuiu a serventia desses valores, pelo que, de uma maneira cada vez mais direta e atenta, vem reclamando dos dirigentes e autoridades uma conduta compatível com o mister de bem servir à coletividade. O raciocínio é simples; a equação, descomplicada: maior transparência conduz forçosamente ao aumento de credibilidade na gestão de recursos públicos, o que resulta no fortalecimento das instituições e da economia do País, de modo a permitir, quem sabe, um ‘‘orçamento ético’’ — nas sempre pertinentes palavras do ex-Governador e, já agora, para gáudio dos brasilienses e dos brasileiros em geral, Senador da República Cristovam Buarque —, e, assim, a diminuição das desigualdades sociais, atávica mazela que nos expõe diariamente ao opróbrio do mundo.

  Mais do que justificada, portanto, desponta a necessidade de se fortalecer, aprimorar e divulgar amplamente os padrões éticos que devem reger a prestação do serviço público, com o objetivo tanto de coibir infrações como de difundir uma mentalidade que, de tão absorvida, torne-se arraigada, um modo de proceder tão usual como a mais rotineira tarefa. O ideal seria a introjeção completa desses princípios éticos como uma forma inequívoca de proporcionar benefício comum à nação, tanto quanto todos aceitam ser indispensável a obediência às leis de trânsito como única possibilidade de ter-se veículos e pedestres pelas ruas. Não se trata de uma utopia. É questão de prioridade e determinação, para a qual inescusável vem a ser o empenho férreo, diligente, diuturno do Estado no intuito de estabelecer e difundir normas e procedimentos simples, claros e de fácil compreensão com vistas a firmar um padrão ético de conduta efetivo que vá ao encontro das expectativas da sociedade, atualmente eivada de crescente desconfiança em relação aos agentes públicos. A tarefa mostra-se hercúlea e demanda, além de tempo, investimentos maciços em educação — pilar central da cidadania —, porquanto a ninguém escapa ser árdua a missão de eliminar vícios culturais enraizados, decorrentes de práticas administrativas obsoletas e autoritárias, esteadas na abominável tradição coronelista de se confundir o patrimônio público com o domínio privado.

  Tão tradicionais quanto espúrias são essas relações na rotina administrativa brasileira, com o compadrio predominando, quer em benefício próprio, quer no alheio. Disso é exemplo o preenchimento dos chamados cargos de confiança, com desprezo ao único critério valioso, ao mérito do cidadão.

  A preocupação com a conduta ética no serviço público é constante. A Constituição brasileira abriga as balizas norteadoras da administração pública. O Diploma Máximo em vigor explicita detalhadamente os princípios que a regem, quais sejam: o da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência. Além desses, ressalta a probidade administrativa, sem a qual o exercício de atividade pública resulta em severas punições que incluem desde a suspensão de direitos políticos até a perda da função pública, com a conseqüente indisponibilidade de bens e o ressarcimento ao erário. Não se há de esquecer também, como integrante desse caudaloso rol de princípios, a exigência de licitação para a aquisição de bens e serviços. No plano infraconstitucional, inúmeras leis contribuem para a regulamentação e consolidação desse padrão de conduta almejado, ainda que quase todos os preceitos constitucionais reveladores de tais princípios sejam auto-aplicáveis.

  De maneira alguma é por falta de previsão legal que se padece dos males ligados à falta de ética no serviço público, entre os quais se destacam:

  a) enriquecimento ilícito no exercício da função;

  b) tráfico de influência;

  c) utilização indevida de cargo público;

  d) mau uso de informação privilegiada;

  e) emprego de recursos públicos e servidores em atividades particulares;

  f) assessoria ao setor privado;

  g) recebimento de presentes.


 
Também muitos são os órgãos encarregados de controlar, fiscalizar, capacitar, treinar e punir os agentes públicos para alcançar esse padrão desejado, a exemplo da Corregedoria-Geral da União, Secretaria Federal de Controle, Tribunal de Contas da União e Ministério Público Federal, além de toda a estrutura do Judiciário para julgar e punir as transgressões porventura notadas pelas auditorias, inspeções e fiscalizações realizadas por órgãos de controle interno e externo para aferir a legalidade, legitimidade e economicidade da gestão dos administradores públicos. Entrementes, a peça-chave de toda essa máquina, o verdadeiro botão de partida de todo o sistema chama-se ‘‘cidadão’’, a quem é dado, inclusive, em verdadeiro reconhecimento a este poder-dever, o direito de ajuizar a ação popular, com o objetivo de anular ato prejudicial ao patrimônio público, bem como de provocar o Ministério Público para a propositura de ação civil pública.

  Se contamos com os meios legais e a infra-estrutura pertinente, por que tantos problemas de conduta são percebidos no serviço público?

  Infelizmente, a questão é mais cultural que de estrutura. Como bem assinalou o Poeta Maior, Carlos Drummond de Andrade, a grande falha da República é suprimir a corte, mantendo os cortesãos. Ao contrário do que aconteceu na América do Norte, cujos cidadãos construíram o país, no Brasil nascemos ‘‘feitos’’ pela Metrópole e por mais de três longos séculos vimo-nos impedidos de ‘‘fazermo-nos’’. As capitanias hereditárias eram verdadeiras possessões de desmandos e, sem contar com um mínimo degrau de liberdade, foi realmente penoso construirmos qualquer anteparo de cidadania. Esbarramos nos comezinhos obstáculos da falta de educação formal, da pífia construção de valores sociais. Talvez em face mesmo desse início de História, do berço enviesado em que nasceu nossa pátria, o público, paradoxalmente, sempre nos pareceu pertencer a ninguém, ao invés de ser de todos, e, como tal, nunca mereceu consideração maior. Daí o lixo jogado na rua, a garrafa vazia arremessada do automóvel em trânsito, dada a incorreta percepção, à grande maioria dos brasileiros, de que pouco importa o que não se situa no âmbito da própria morada. Desafortunadamente, por estas paragens sempre vingou a mentalidade segundo a qual, ‘‘se não é meu, não me diz respeito nem demanda de mim cuidado algum’’. Assim é que o descaso com a coisa pública vicejou, soberano, grassando a ineficiência, apesar desse tão forte aparato institucional voltado ao controle e à fiscalização dos atos públicos.

  Pode-se afirmar com segurança que ainda hoje grande parte das normas de conduta são desconhecidas pelos agentes públicos e por isso relegadas a segundo plano, quando não acintosamente descumpridas. Mesmo diante do esforço de modernização da máquina administrativa, com o precípuo objetivo de alcançar a máxima eficiência e eficácia, em atendimento ao afã de se obter urgentes e notórios resultados, em raras ocasiões houve preocupação com a promoção e divulgação desse almejado padrão de comportamento no tocante aos quadros públicos, de modo a, coerentemente, incluir a questão ética como instrumento da gestão governamental. Cuida-se, aqui, de um modo padronizado de lidar com a coisa pública, em relação ao qual o servidor, além de consciente da importância da atividade que desenvolve, saiba naturalmente de suas limitações, quer morais, quer administrativas. Acima de tudo, os agentes políticos, os agentes públicos hão de estar conscientizados de que são servidores, impondo-se a constante prestação de contas aos contribuintes.

  Digo-lhes que a falha parece haver residido no próprio sistema institucional. Do contrário, por que pareceria auto-incriminadora qualquer consulta de um agente sobre determinado procedimento? Ademais, diante do lento, ineficaz e burocrático processo investigativo sobre desvios funcionais, risível sempre se afigurou, à maioria, a possibilidade de uma punição severa.

  Rompido o substrato ético, o estrago, mostra-se irremediável. Os efeitos da corrupção se propagam nas mais diversas áreas, atingindo amplamente a imagem interna e externa da administração pública. Grosso modo, pode-se apontar as conseqüências mais aparentes desse autêntico malefício social como sendo:

  a) aumento dos custos de operação;

  b) majoração do endividamento externo e interno do País;

  c) maior dificuldade na captação de recursos para investimento;

  d) diminuição da qualidade e alcance das ações do governo;

  e) redução da produtividade do setor público;

  f) desvio de recursos destinados a áreas sociais para setores ligados a construção e infra-estrutura (esfera mais propícia ao favorecimento indevido);

  g) por conseguinte, agravamento da desigualdade social, com acentuação dos sacrifícios impostos à população mais carente;

  h) descrédito no funcionamento e eficácia das instituições e serviços públicos;

  i) diminuição da auto-estima da população;

  j) visível perturbação no moral da nação;

  k) deterioração do nível de confiança na economia brasileira, desestimulando a vinda de capital produtivo estrangeiro e incentivando a fuga de capitais;

  l) prejuízo à formação dos valores na camada mais jovem da população, dada a divulgação de péssimos exemplos do que deveria ser a elite intelectual e moral brasileira.

  Só recentemente, em meio à sucessão de escândalos a envolver altos dirigentes, acompanhados incansavelmente por uma imprensa cada vez mais independente e ágil, e com a inegável mobilização da sociedade brasileira, o assunto reaparece como prato do dia, bastando uma rápida olhada nas eleições deste ano para se constatar que não vingam mais, por aqui, atitudes consideradas pouco éticas, como o louvor ao oportunismo que, anos atrás, deu margem até a um anúncio publicitário com o qual se divulgou a esperteza como um jeito de se dar bem na vida. Quem não se lembra da infelizmente famosa ‘‘Lei do Gerson’’?

  Como otimista que sou por convicção e natureza, enxergo no horizonte tempos alvissareiros. Senão, que dizer da Comissão de Ética Pública, cujos resultados já se entremostram, apesar da tenra idade do Órgão? Importantíssimo e digno de aplausos parece-nos o Código de Conduta da Alta Administração Federal, aprovado ‘‘com o intuito de angariar a confiança da sociedade na conduta dos agentes públicos, a partir do exemplo dado pelos ocupantes dos mais altos cargos comissionados do Executivo Federal’’. Esse Código torna claro o dever dos servidores de revelarem seus interesses particulares que venham a conflitar com o exercício da função pública. Delineia também os limites de atividades profissionais e de gestão patrimonial e financeira.

  Disso tudo deflui que, em se almejando um Estado eticamente forte, faz-se mister um mecanismo eficaz para dizer aos agentes públicos das suas inerentes responsabilidades e, assim, alcançar resultados visíveis, ou seja, fomentar uma atmosfera capaz de fazer transparecer a conduta ética como padrão. Parece ser acertada a busca pela consolidação de uma cultura na qual se efetue eficaz e rotineiramente a prevenção contra a corrupção. Para tanto, a vigilância do cidadão comum é de fundamental importância, tornando-se antídoto contra abusos de poder. Nesse processo de assepsia cultural, não se afigura mera coincidência que a transparência caminha pari passu com o desenvolvimento da cidadania. É evidente que, quanto mais democracia, quanto maior a liberdade de imprensa e de opinião, mais contundente o compromisso dos agentes públicos com a ética. O resultado disso tudo será um Estado eficiente na promoção do bem-estar social, bem distante daquilo de que falava Montesquieu, ao advertir: ‘‘quando num governo popular as leis não mais são executadas, e como isso só pode ser conseqüência da corrupção da república, o Estado já está perdido’’.

Há quem aponte a necessidade de medidas práticas de grande repercussão. De minha parte, defendo, sim:

  a) a diminuição da burocracia como método eficaz para aumentar a transparência, eliminando-se os indesejáveis ‘‘interpostos canais’’, a famosa zona cinzenta na qual dificilmente o interesse público dissocia-se do privado.

  b) uma equação mais ajustada, mais realista, entre a responsabilidade exigida pelos cargos e as remunerações percebidas pelos agentes. Se é certo, como afirmava Machado de Assis, que a ocasião faz o furto, pois o ladrão já nasce feito, há de se concordar que determinadas circunstâncias funcionam como autênticos chamarizes, incentivando o desvio de conduta, mormente numa época de apelo fácil ao consumismo desenfreado e mitigação de valores morais. Com salários compatíveis, menor o risco da corrupção. Ninguém haverá de expor um bem precioso como um bom emprego, principalmente nessa quadra de vacas magras, se a possibilidade de ganho ou impunidade não se sobrepuser, com vantagens, a uma eventual perda, sobretudo se grande a sanção.

  c) a capacitação profissional de agentes como condição sine qua non para uma boa administração, no mais amplo sentido. Parece ser consenso que os holofotes devem estar voltados, a par do aprimoramento técnico, à formação humanística dos servidores, o que envolve, necessariamente, a lapidação de valores éticos e morais.

  d) uma maior eficácia na aplicação das leis, buscando-se, com a necessária celeridade, mas sem o prejuízo do exercício do direito de defesa, glosar, com todo o rigor cabível, desvios de conduta.

  Por derradeiro, para sacudir o último resíduo de descrença dos derrotistas, aponto a campanha presidencial deste ano como a mais iluminada vitrine de que em curso está o processo de aperfeiçoamento ético por que passa toda a sociedade brasileira. Vivemos, sim, uma época em que desponta o valor solidariedade entre a nossa gente, a incluir também o empresariado nacional, haja vista o notável crescimento do chamado Terceiro Setor, formado por entidades privadas que se unem ao Estado com o objetivo de alcançar um país melhor e mais justo. Essa consciência cidadã das elites pátrias vem da tardia constatação de que os problemas sociais não são da responsabilidade exclusiva do Estado, mas incubem à sociedade, de modo a se conseguir mais facilmente ‘‘o bem de todos e a felicidade geral da nação’’, como profetizou D. Pedro I. Iniludivelmente, tal resultado diz com a prevalência da atitude, do ato ético, o qual, nas sábias palavras de Sua Santidade o Dalai Lama, vem a ser, exatamente, ‘‘aquele que não prejudica a experiência ou a expectativa de felicidade das outras pessoas’’. Oxalá assim seja, a fim de que, num futuro bem próximo, o jeitinho brasileiro perca de vez a conotação pejorativa para ganhar somente as texturas da alegria e criatividade da gente morena daqui.

Matéria de domínio público, publicada no jornal Correio Braziliense, encarte Direito & Justiça, em 16.12.2002.


Dezembro/2002, 1ªquinzena - Execução da contribuição previdenciária (14.12.2002)

Márcio Ribeiro do Valle
(Juiz Vice-Presidente do TRT de Minas Gerais e Professor de Direito Processual do Trabalho no Curso de Pós-Graduação em Direito da Empresa da PUC-MG)

            Tendo por base a determinante inserida na Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, que elasteceu a competência da Justiça do Trabalho, remeteu o Governo Federal mensagem ao Poder Legislativo, acompanhada de projeto de lei, o qual, após ser aprovado, foi sancionado e se transformou na Lei nº 10.035, de 25 de outubro de 2000, a qual, com a regulamentação que estampa, disciplina a cobrança, pela Justiça do Trabalho, das contribuições previdenciárias emergentes de suas próprias decisões em favor da Previdência Social.

            Antes do advento da Emenda Constitucional referida, a atuação do Juiz do Trabalho, quanto ao débito da contribuição previdenciária, se não quitada espontaneamente, cingia-se à remessa de informações à Previdência Social. O INSS, após receber da Justiça do Trabalho as citadas informações, procedia na forma do disposto na Ordem de Serviço Conjunta DAF/DSS nº 66, de 10 de outubro de 1997. Analisava se existiam parcelas sujeitas à incidência de contribuição previdenciária, fixando prazo para o recolhimento das devidas, se fosse o caso. Por fim, lavrava a Notificação Fiscal de Lançamento de Débito (NFLD), quando esgotadas as gestões para o recolhimento e o prazo eventualmente concedido, tudo para que no fim fosse o débito inscrito em dívida ativa, possibilitando sua execução em favor da Previdência perante a Justiça Federal.

            Com o advento, porém, da citada Emenda Constitucional nº 20, foi criado um 3º ao artigo 114 da vigente Carta Magna, elastecendo, como dito, a competência ali prevista, isto ao dispor textualmente que: ‘‘Compete ainda à Justiça do Trabalho executar, de ofício, as contribuições sociais previstas no art. 195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir’’.

            Substituiu-se, então, a partir daí, a simples remessa de informações em nível administrativo, que anteriormente se fazia, pela efetiva execução das contribuições devidas, a ser processada, a teor do disposto no texto constitucional, de ofício — isto é, impulsionada pelo Juiz do Trabalho sem provocação do órgão previdenciário interessado, sendo o processo do trabalho bastante à sua efetivação.

            As normas consolidadas, com a nova redação que lhes foi dada pelo diploma legal em comento (Lei nº 10.035/2000), passaram a possibilitar que todos os órgãos desta Justiça Especializada procedam de igual modo quando da execução das contribuições previdenciárias decorrentes das suas sentenças. Até então, os Tribunais Regionais Trabalhistas, carecendo de uma regulamentação de amplitude nacional, por entenderem auto-aplicável a norma da Emenda Constitucional nº 20/98, vinham adotando normas de procedimento segundo seus próprios entendimentos, editando Provimentos que pretendiam regulamentar as cobranças devidas nos respectivos âmbitos de suas jurisdições, cada um a sua maneira.
  
COMISSÕES DE CONCILIAÇÃO

            Doutro tanto, tem-se, no estudo da solução alternativa extrajudicial dos conflitos trabalhistas, que o Poder Executivo, adotando idéia oriunda do Tribunal Superior do Trabalho, remeteu ao Poder Legislativo mensagem com projeto de lei, o qual, após emendas, veio a tornar-se na Lei nº 9958, de 12 de janeiro de 2000, acrescendo um Título novo (VI-A) na Consolidação das Leis do Trabalho, disciplinando as chamadas comissões de conciliação prévia.

            Tais comissões, extrajudiciais, em suma, ficaram facultadas, pois não são obrigatórias, ao nível de empresa e intersindical, sempre com composição paritária, ou seja, com representantes dos empregados e dos empregadores e com atribuição específica de tentar conciliar os conflitos individuais de trabalho, como dito, extrajudicialmente.

            Ao nível de empresa, as comissões devem ter, segundo a lei, no mínimo dois e no máximo dez membros, metade indicada pelo empregador e metade eleita, em escrutínio secreto, pelos empregados, com fiscalização do sindicato da categoria profissional, havendo tantos suplentes quantos sejam os membros efetivos, com mandato de um ano, permitida uma recondução.

            Deu-se estabilidade provisória aos representantes dos empregados, durante o exercício e até um ano após findo o mandato, devendo ocorrer, normalmente, prestação laborativa pelo trabalhador, havendo de sua parte afastamento, apenas, quando convocado o eleito para atuar na Comissão de Conciliação Prévia. Já a constituição e funcionamento da Comissão em nível intersindical são definidos por meio de convenção ou acordo coletivo de trabalho, ou seja, com a intervenção dos sindicatos.

            Importante fixar que se disciplinou, como exigência imperativa, que toda demanda de natureza trabalhista deve, obrigatoriamente, ser submetida, primeiramente, ao crivo da Comissão de Conciliação Prévia, desde que existente, em nível de empresa ou intersindical (ao empregado se faculta a opção por uma delas para submeter sua demanda a exame conciliatório), na localidade da prestação de serviços. Aliás, apenas em não prosperando a conciliação é que se fornece ao interessado declaração neste sentido, a qual deve ser juntada na hipótese de eventual reclamação trabalhista, levando sua ausência, em existindo comissão, à extinção do processo por falta de pressuposto processual objetivo extrínseco, sem julgamento do mérito.

            Aceita, todavia, a conciliação, lavra-se termo a respeito, assinado por todos, o qual é título executivo extrajudicial para, em não sendo cumprido pelo devedor, ser executado perante a Justiça do Trabalho, mais especificamente pela Vara do Trabalho que seria competente para conhecer de eventual reclamatória. Importante realçar, na matéria, que a conciliação obtida perante as citadas comissões tem eficácia liberatória geral quanto a qualquer direito trabalhista do empregado, exceto no que se refere às parcelas expressamente ressalvadas no termo conciliatório.

AJUSTE E EXECUÇÃO

            Como antes aclarado, celebrado, perante as Comissões de Conciliação Prévia, acordo entre empregado e empregador, lavra-se o termo correspondente, assinado por todos, o qual é título executivo, de natureza extrajudicial para, em não sendo cumprido, ser perante a Justiça do Trabalho executado, isto na Vara do Trabalho que, originariamente, seria a competente para conhecer e julgar eventual reclamatória trabalhista.

            Mas, se tal é tanto real no que se refere ao crédito obreiro, o mesmo não se pode dizer quanto às contribuições previdenciárias emergentes do mesmo ajuste, eis que a Lei nº 9958/2000, ao tipificar como título executivo extrajudicial o crédito laboral decorrente da conciliação perante as citadas Comissões, que também são extrajudiciais, não estendeu a mencionada executividade (e nem poderia) ao crédito previdenciário atinente às contribuições previdenciárias daí decorrentes.

            Na verdade, como já elucidado, não havia como a citada lei isso fazer, porquanto, se o fizesse, incorreria em manifesta inconstitucionalidade, já que a Emenda Constitucional nº 20/98, ao acrescer um parágrafo (3º) ao art. 114 da Constituição Federal, para elastecer a competência jurisdicional trabalhista à execução da contribuição previdenciária, foi restritiva, isto para outorgar tal competência apenas quanto às contribuições decorrentes das sentenças que proferisse, não de qualquer outra contribuição.
  
DUPLA COMPETÊNCIA

            Conseqüentemente, face o explicitado no antecedente parágrafo, cumpre patentear-se a existência, hoje, de duas competências judiciais concorrentes para a execução de débitos previdenciários.

            A primeira decorrente de levantamentos fiscais, administrativos, quando os débitos, inscritos em dívida ativa, permitirão a execução, pela Procuradoria Fiscal da Previdência Social, perante a Justiça Federal. A segunda, diferentemente, é a execução, de ofício, pela Justiça do Trabalho, das contribuições previdenciárias decorrentes de suas próprias decisões (aqui enfeixadas também as conciliações judiciais trabalhistas, que têm a mesma natureza — parágrafo único do art. 831 da CLT), conforme os termos da EC nº 20/98 e da Lei nº 10.035/2000.

            Obviamente, não se há incluir, jamais, o crédito previdenciário decorrente de acordos celebrados perante as chamadas Comissões de Conciliação Prévia, que são extrajudiciais (Lei nº 9.958/2000), porquanto não se terá aí, incontestemente, contribuição emergente de decisão da Justiça do Trabalho. O INSS, pois, se quiser receber tais contribuições (do ajuste celebrado perante Comissão de Conciliação Prévia), terá que analisar se existem parcelas conciliadas de cunho salarial, estas então sujeitas à incidência previdenciária, fixando, administrativamente, prazo para o recolhimento devido, inclusive, se necessário, com a lavratura da NFLD (Notificação Fiscal de Levantamento de Débito), tudo a possibilitar, quando ausente a quitação, após os procedimentos mencionados, a inscrição do débito em dívida ativa e sua execução forçada, através de sua Procuradoria Fiscal, perante a Justiça Federal, não porém a Trabalhista.

Matéria de domínio público, publicada no jornal Correio Braziliense, encarte Direito & Justiça, em 09.12.2002.

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